
Projeto | A Mão na Moda – Uma História Brasileira (2000)
O MUSEU, A RENDEIRA E O ESTILISTA
O museu A Casa realizou, no ano 2000, seu 1º projeto de integração artesanato e design. Para participar deste projeto foram convidados o estilista Walter Rodrigues, a Associação das Rendeiras de Morros de Mariana, no Piauí, e a estudiosa de moda Suzana Avelar. As rendeiras dessa associação foram selecionadas devido à alta qualidade do seu trabalho, reconhecido pela Sala do Artista Popular do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, do Rio de Janeiro.
Walter foi até Morros da Mariana, integrou-se ao grupo e propôs uma alteração nos fios, introduzindo a cor preta e realizando pesquisas com os fios de viscose, elastano e seda. Também pediu que fossem aumentados, através do xerox, os desenhos de renda, mantendo assim o original, porém num tamanho maior. Trabalhando com esse material, compôs parte da sua coleção Primavera/ Verão 2001, apresentada na São Paulo Fashion Week, maior evento da Moda Brasileira, nas dependências da Bienal, no parque Ibirapuera.
Dentre as peças de maior destaque, chamando a atenção do público e da imprensa especializada, estavam os vestidos de renda de bilro preta, confeccionada nas almofadas das rendeiras Socorro, Fátima, Graça, Alzita, Neile, Hortência, Laura e tantas outras, perto das dunas e dos carnaubais do delta do Parnaíba. Temos aqui uma bem sucedida síntese de beleza e tradição.
O sucesso alcançado com essa atividade conjunta despertou novo entusiasmo nas rendeiras que aumentaram sua capacidade produtiva e chamaram a atenção da prefeitura local, que ofereceu uma reforma na casa da associação.
O resultado do nosso projeto foi mostrado em uma exposição no antigo Espaço Cultural Citibank, na cidade de São Paulo, em 2001.
O museu A CASA continua mantendo um relacionamento próximo com a Associação das Rendeiras, fazendo encomendas pontuais. Nesta época de pandemia, realizamos uma live, de ampla divulgação através das redes sociais, reunindo numa conversa dona Socorro, guardiã da Associação, e Walter Rodrigues.
Atualmente, o trabalho dessas rendeiras ganhou mundo, com encomendas volumosas até no Japão.



RENDAS E RENDAS
Giselle Paixão – museóloga
Rendas são obras de malha ou tecido aberto em que os fios entrelaçados formam desenhos, podendo ser confeccionadas em fios de algodão, linho, seda, ouro, prata, e até de fibras como as de bananeira.
Usadas na confecção de peças de vestuário ou em detalhes como golas e punhos, têm sido tradicionalmente empregadas também na decoração de enxovais de cama e mesa e na guarnição de toalhas de altares.
Segundo a técnica de elaboração, há vários tipos de rendas, destacando-se as rendas de agulha, as de bilros e o crochê, além daquelas chamadas mecânicas, ou feitas industrialmente.
No Brasil, as rendas de bilros estão dentre as mais tradicionais, ocorrendo desde o nordeste até o litoral sul do país.
Tu me ensina a fazer renda…
A renda de bilros é tecida sobre uma almofada sobre a qual se fixa um cartão perfurado segundo um desenho que serve de orientação à rendeira.
Cada desenho requer uma quantidade de bilros, que são sempre trabalhados aos pares. Assim, diz-se que uma renda requer 24 pares de bilros, ou 86 pares de bilros, por exemplo.
O bilro é uma peça de madeira constituída por uma haste com extremidade esférica ou em formato de pera. Em Morros da Mariana, Piauí, os bilros são feitos de madeira sabiá e as extremidades em noz de tucum, uma palmeira existente na região. Os fios são enrolados na ponta de cada bilro, numa operação denominada “encher o bilro”.
As almofadas são feitas pelas próprias rendeiras em chita ou outro tecido, e recheadas de palha de arroz. Apoiam-se sobre suportes de ripas de madeira chamados grades.
Os fios que constituem a renda vão sendo entrelaçados à medida que se manuseiam os bilros em movimentos circulares, uns em torno dos outros, sempre aos pares, num constante “trocar”.
Os pontos executados, sempre seguindo o desenho, vão sendo presos à almofada por intermédio de alfinetes.
É um trabalho que, por sua delicadeza e complexidade, demanda muito tempo para progredir, podendo uma peça levar de semanas a meses para ser concluída.
Uma arte secular
A forma atual da renda deriva de um artesanato essencialmente europeu, que se consolidou na época do Renascimento. Suas origens mais remotas, entretanto, residem em técnicas elementares trazidas do Oriente Médio.
No século XIV a renda já era conhecida na França, Bélgica e Inglaterra, mas seu uso se generaliza nos fins do século seguinte, chegando à Itália no quinhentos. A valorização das rendas nos séculos XVII e XVIII leva ao surgimento das manufaturas, sob o patrocínio das cortes e essa arte passa a ser ensinada nos conventos e em escolas profissionalizantes.
Em 1768 cria-se a primeira máquina de fazer rendas, cujo aperfeiçoamento levou à produção de rendas que se confundiam com as manuais. Em 1815 inaugura-se na Inglaterra a primeira fábrica de rendas à máquina.
No Brasil, a renda de bilros chega com os portugueses, que se inspiraram nas rendas flamengas, em virtude das tradições comerciais entre Portugal e a Flandres. São famosas ainda hoje as rendas de Peniche, Vila do Conde e Viana do Castelo.
Em terras brasileiras a renda de bilros dissemina-se especialmente no litoral, destacando-se hoje os centros nordestinos, catarinenses e do Espírito Santo.
MÍDIA – FOLHA DE SÃO PAULO – DE GABRIELA MELLÃO
A RENDEIRA E O ESTILISTA
Walter Rodrigues e Maria do Socorro Galeno evidenciam suas diferenças respondendo às mesmas perguntas da Folha.
Folha – O que é moda?
Walter Rodrigues – É muito cínica, não é arte, mas comércio.
Maria do Socorro – Acho que a moda é uma coisa boa. O ruim é que ela tem de estar sempre mudando.Folha – Considera seu trabalho uma arte?
Rodrigues – Não, na maioria das vezes eu absorvo da arte milhões de informações e passo tudo para uma visão comercial, contemporânea.
Socorro – Considero, claro. É uma arte de sabedoria e inteligência, muito valiosa. Tem que ter talento, amor e paciência.Folha – Qual sua expectativa para os próximos anos?
Rodrigues – O que aconteceu em 11 de setembro interfere na vida de todos nós. Em relação às roupas e ao design nacional como um todo, acho que vai haver um aumento de interesse. Importados vão ocupar um nível menor de importância.
Socorro – Esse problema de guerra prejudica o mundo inteiro. Apesar disso, espero que tenha mais trabalho, que a gente cresça mais, faça coisas novas e que agrade ao povo.
ARTESÃS COMEMORAM OS FRUTOS
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Interferências simples e inofensivas revolucionaram o trabalho das artesãs. O repertório ganhou uma avalanche de opções como o uso de cores e de novas linhas. E se antes elas se limitavam a reproduzir as mesmas toalhas brancas de mesa e bandeja que faziam suas mães e avós, agora introduziram saborosas possibilidades: camisetas, vestidos e saídas de banho em renda.
Não causa espanto, portanto, saber que a Associação das Rendeiras comemora vários feitos: o triplo de encomendas que recebia antes do projeto acontecer, 26 participantes e a sede reformada pelo prefeito. Depois do sucesso “exterior”, ele resolveu provê-las de “luxos” como banheiro, água encanada e teto sem goteira. “Mudou muita coisa na nossa vida. O local de trabalho está mais agradável. A gente faz mais renda e melhor”, diz Socorro. Segundo conta, cada uma demorava cerca de um mês para fazer uma camiseta, que tem o custo de R$ 10. Hoje, fazem em dez dias. (GM)